segunda-feira, 23 de dezembro de 2013


Mãos de Café

 

Rumo Leste – Braço da Estrada

Março 1945 – Verão

 

A tua singularidade é perpendicular à minha, Barbosa. Conversei contigo da última vez, mas tu não me ouviste. Expliquei-te os caminhos, mas a teimosia falou mais alto. E mesmo que não voltes gostaria de dizer que já és eterno. Um pedaço teu já ficou para depois. Mas de borrão fazem-se as minhas lembranças. Borrão de café ao meio-dia. E as minhas mãos gostariam de silenciar o barulho atroz de algo que explode dentro de mim, mas eu também me esqueço; esqueço-me da incapacidade das minhas mãos de café.

Talvez o meu talento seja descobrir-te. Forçar-te um sorriso, mesmo que falso aos olhos dos anjos que conversam comigo. Estou à beira da tua ausência há muito tempo. É inegável o nosso fracasso, não? Mas é preciso coragem para galgar os degraus do mundo. Avisei-te. Agora é tarde, a carta chega com atraso de uma vida inteira, mas eu não perco a chance. Tu resolveste ir e isto é fato. As consequências não são minhas, porém eu não nego o milagre dos meus conselhos.  O começo é o mapa desenhado nas tuas costas, indicando sempre o cuidado com o precipício do lado direito. A montanha é o júbilo da força dos teus braços. E a vitória só a Lua tem o poder de descrever em linhas garrafais. Então encontra a Lua, Barbosa!  E me sussurra a resposta!

E me deixa ir, porque é hora de conversar com as velas debaixo das cadeiras. Ninguém sabe que estou aqui desde que tu saíste. Um dia será tarde demais, algum pressentimento rasteiro me diz. Um dia as roupas não farão mais sentido em meu corpo. E tu irás lamentar, Guilherme. As tuas lágrimas não serão suficientes para lavar a minha agonia. Mas faz ao menos uma vez o que eu te digo. Tu sabes que eu levaria tudo isso comigo se eu pudesse, limparia as ruas, o iluminar das velas, acenderia o escuro pra ti, mas não posso.

O mundo recai em nós, Barbosa, e nenhuma estrela aparece se estivermos ausentes. É inútil insistir na frequência dos batimentos dos nossos corações. Jaz aqui meu último suspiro. Espero-te mesmo manchada pelos borrões que escorrem pelos rodapés do nosso quarto. Decresce nesta hora, com certeza, o meu desespero, e resvala assim o meu sangue na tua boca tão quanto é intenso o meu pedido aos céus.

 

Dona Mabelle

Vila dos Açores

Março de 1945
 

Camila Carelli

domingo, 8 de dezembro de 2013


Compasso de Carretéis

 

     Eram 5h30min da tarde como sempre. A mesma hora exata e já tão conhecida. Porque depois de tanto tempo já era possível se acostumar com a umidade presente naquela atmosfera sempre chuvosa, com o cheiro de hortaliças recém-crescidas, o horizonte vasto e isolado de quem se mantém ausente apesar de tudo. E ele também era assim, mesmo não assumindo suas palavras. Aquilo era uma tarefa dentre muitas outras, porém ao mesmo tempo era única, como se até o tempo parasse para contemplá-lo na execução dos movimentos que faziam os carretéis girarem. Ele pressentia a hora mesmo que o relógio dissesse o contrário, e sentia, no fundo de sua alma o quanto tudo aquilo era difícil, árduo e pesado. Sim, tão pesado quanto as botas que se agarravam às suas pernas, quanto o céu nublado que parecia acariciar seus ombros e que era tão escuro quanto o caminho seguinte ao passo anterior.
Mas era assim. Chegava a hora, e também o desespero. No começo sofreu calado, vendo de longe o campo limpo e o quartel muito distante, muito ao fundo. No céu, as nuvens sempre baixas e os relâmpagos que lançavam clarões intermitentes, ameaçando cair inesperadamente. Mas, indiferente à situação geral, a tarefa consistia em pegar o cordão afundado na lama fria e puxar os carretéis, pesados como troncos de árvore, que distendiam seus braços e enrugavam sua testa. E ouvir o barulho enlouquecedor das suas botas ensopadas pela chuva fina que começava a cair.
Estava sozinho naquela labuta com um sentimento estranho que crescia dentro dele conforme o passar dos dias, imperceptivelmente, parecido com um apego doentio a tudo aquilo, à tarefa, ao lugar, à rotina, como um verme que se instala no corpo fraco e debilitado: uma briga entre o cansaço evidente em seu rosto, tão sério e singularmente demarcado. Sim, uma metamorfose em um simples soldado que confunde suas ideias com os ideais da pátria. O apego aos carretéis era o veneno já corrente em suas veias, uma ideia oculta em seu peito, uma ordem ecoada ao som do vento. O ódio! O prazer em submeter a si e aos outros. Puxar os carretéis, marchar no ritmo da chuva, pisar nas poças como quem pisa em almas de inocentes. Correr... Correr... Andar... Em círculos... Até que os olhos fossem apenas a personificação dum vazio, da desesperança. Ah, os olhos negros que podiam denunciar a verdade!
Depois de uma semana naquilo, não sentia mais o peso da consciência, o peso da morte, o peso da chuva, a presença da dor, da força, o calor do seu corpo, a cor das suas botas, o barulho ritmado dos carretéis. Era só andar e não olhar para trás. Ele era o círculo e também parte dos carretéis, tão insensível e automático quanto eles. Agora não contava os minutos para sair dali, para terminar a tarefa cumprida, e não queria saber o que mais havia por fazer. Não queria sair daquela umidade que empapava seu uniforme e lhe inflamava os nervos, daquele frio que lhe dava coceiras. Não! Ele queria ficar, nem que fosse pela eternidade, pela contagem infinita de todos os planetas. Era ele e os carretéis! Queria sentir a guerra, o calor da pólvora, amaldiçoar a chuva e o inimigo. Ah, aqueles que o detestavam!
E faltava tempo, muito tempo, muitos passos a mais. E rodava em círculos... Agora se sentia pronto para a marcha, como uma máquina pronta para espalhar o terror. O ódio continuava a crescer dentro dele, quanto mais puxava os carretéis e fazia seu corpo sofrer. Ódio daquela situação injusta, daquele sacrifício sem nome e objetivo, ódio daqueles que fingiam ser patriotas, ou sentir compaixão.
Mas de repente, como se os carretéis tivessem dado uma ordem, ele sentiu suas pernas pararem com a corrida maníaca, e se deparou com uma enorme poça de água cristalina apesar da lama que a rodeava. E ao abaixar o rosto percebeu o reflexo de um rosto muito sério e magro coberto por uma pele amarelada que se assentava muito bem em cima dos ossos, o que ocasionava formação de linhas e encovas quando sorria. Reconheceu de algum lugar aquelas maçãs do rosto que se destacavam conforme sorria. Não se conhecia mais, era óbvio, porém percebia as garras do ódio que o perseguiam, perseverantes.
Crescia a alma dum soldado no compasso dos carretéis. Os carretéis que já conheceram em algum momento o que era a guerra.
Camila Carelli

sexta-feira, 15 de novembro de 2013


* Profundidade *

“Hoje, os gestos soam como uma palavra forte; os sons conspiram como um silêncio profundo.”
Camila Carelli

domingo, 27 de outubro de 2013


* Bomba *

“Eu sou um ato falso, uma bomba armada sobre a terra, e subitamente uma ideia vacilante na ponta dos dedos.”
Camila Carelli

domingo, 20 de outubro de 2013



 
       
Não me descrevo porque talvez eu não caiba nestas linhas. Minha alma consome muito papel, e mais algumas palavras e então, encontro o mesmo ciclo. Um ciclo que anda dentro de mim; o frio não é o suficiente para descrever o que vive dentro de mim. Talvez eu não exista, apesar da morte ser uma forma de existência. Alimento-me de jogos múltiplos. Faço e me desfaço com a rapidez do sangue que bombeia minha essência.
Nasci desabitada. E só me encontrei porque a voz me veio primeiro. Somente em forma de palavras. A conjugação das frases esquenta meu corpo, acalenta meu pensamento. Retinha-me, mesmo sem saber. E o descobrir do mundo letrado veio vagarosamente, um dia após o outro, e quando despontou foi como uma explosão nuclear de uma alma que necessita vaguear por outros mundos. Só letras. O dom dorme na palma das minhas mãos, e num giro me sufoco, anulo-me num desprezo pretenso de quem sabe que vai se dividir.
Morri uma vez, confesso. Ou melhor, dividi-me. Eu tinha dezesseis anos quando me reparti em duas vidas. Abri a porta de casa e quando vi um solavanco reavivou meus pensamentos. Verônica Ventti caiu dos céus, um palpite que veio para salvar minha vida, minha vontade. Ela se impôs, sem pedir licença. Conheci-a como um convidado que senta à sua mesa sem dizer o porquê. Porém, só mais tarde reconheci naquela mulher encantadora, a continuação da minha história. Foi só olhar para o lado de dentro e entendi completamente. Era eu sem ser eu. Algo que, no fundo, não me pertencia e que era dona de uma vida única.
Uma vida longínqua no tempo. Está tão perdida quanto eu. Verônica Ventti nasceu do meu desejo de existir, como um desejo de viver, um ânimo que me faz ser gente novamente. Ela, por vezes, me resgata do submundo da mente, e ajuda-me a encontrar o caminho eterno para meu próprio reconhecimento e admiração.  E assim, apropriou-se do meu oxigênio e das minhas lágrimas e tomou corpo. É o meu caminho mais curto para os devaneios, para a vida que retumba num instante eterno.
No entanto, eu continuo sendo eu com um novo ímpeto. Ela continua sendo ela, respirando entre os ares da minha sensibilidade. Descrevê-la é tarefa impossível, tanto que somos existencialmente desconhecidas. Não a vejo senão como um brilho necessário aos meus olhos.
Despejo-a para fora de mim sempre que o mundo corre mais rápido do que eu. Ela é a minha resposta ao meu êxito em existir; aos medos que param a vida e aceleram o tempo. O mundo fora de mim é incerto, porém ela é uma companhia eterna. Um alguém tão necessário a mim quanto a continuidade das minhas mãos estarem desenhando estas palavras.
Sou assim e não nego. Estamos costuradas às costas uma da outra, ligadas inegavelmente por um destino qualquer, mesmo que silencioso e abençoado.
Camila Carelli
 


Cartuchos e Cigarrilhas

 
*

 
Parte V

 
*

Os copos não vão se encher sozinhos, Guarnieri, só por causa do teu desespero. É um desperdício de tempo falar contigo, que quase nunca escuta. E é também perca de tempo olhar pra ti, que quase nunca percebe. O sonho que se acalenta e que se perde é como uma gaivota a ganhar os céus e que não vai pousar de novo. Voar para sempre? Pousar para sempre? Pouco importa estas coisas que não mudam a natureza das coisas ou a essência do copo...

A confusão das borboletas, a metamorfose das nuvens, a pessoa que grita do outro lado, o sussurro vazio dos pescadores de almas. E andar com os próprios pés não está bastando, mesmo que seja noite ou dia. O rompimento da luz na tua janela continua, acalentando os teus temores, insensível ao mundo lá fora. Tu tens medo, Guarnieri, do que é altamente vendável? A compra de móveis, de utensílios, de mantimentos, a troca incansável de moeda velha e suja que causa pequenos desastres no corpo de quem apenas observa. Ah, Guarnieri, se eu fosse tu, eu trocava o carpete sujo, as xícaras meladas e aquele abajur queimado da tua casa, que são como moradores de semblante e alma apaziguados demais para o mundo agitado e inteligente que se passa alguns andares abaixo do teu.

Porque a desgraça, Guarnieri, às vezes é algo que nós escolhemos. Quem escolhe as tuas roupas, Guarnieri? E os teus gestos, a tua iminência, a tua ausência, confusão, pressa e dúvidas? Quem escolhe? Duvido da tua verdade, seja qual for o lugar que tu a escondeste... Nada em ti, Guarnieri, possui som ou vida. O som da vida se esvaziou há muito tempo, sobrando apenas as borras de café na tua camisa branca, os móveis cansados de apenas estarem parados, a velhice imunda que inunda a tua sala de estar, e que denunciam o vazio, as linhas confusas dentro do teu peito.

Que cheiro de tragédia é esse? Arrastando-se debaixo da porta, penetrando os átomos de poeira, do próprio ar. Cadê nós nesta peça? Haverá um dia, Guarnieri, que a tua displicência com a vida acabará por consumi-lo, até que sobrará de ti um monte de panos. Mas hoje, não sei por que não tenho pena de ti. Apenas de mim.

Ah, Guarnieri, apressa os passos e troca logo os copos. Jamais espera. E chama logo o Doutor Colleman, porque eu preciso falar com ele.

Camila Carelli

sexta-feira, 23 de agosto de 2013


Cartuchos e Cigarrilhas

 *

Parte IV

 *

   É estupendamente desnecessário, Guarnieri, as inúmeras desculpas que tu tentas me dizer. Este modo teatral de quem escolhe a perna para se ajoelhar, de quem escolhe as palavras que vai dizer, é altamente perceptível e me envergonha. Não te envergonha, Guarnieri, todas as tuas mazelas? Tu, que, por vezes, recorre ao ódio e não admite. Cansaste, ao menos, do amor, Guarnieri? Já o testou alguma vez? E aqueles olhos de platina que não te veem, que nunca te viram. Dói-me vê-lo implorar... Um alguém que merece tanto... Que merecia a alegria de ter uma companhia decente.

   Por que eu sei, Guarnieri, que quando tu te sentas defronte a mim neste Café, e teus olhos baixam e as tuas mãos se cruzam, eu sei que tu ainda esperas por algo. E o teu olhar fixo na borda da minha xícara, pupilas de quem nunca conheceu o amor ou a felicidade. Fala-se muito em amor, mas são poucos os que têm a oportunidade de senti-lo. Eu olho pra ti, Guarnieri, e vejo alguém que está prestes a perder a consciência. Tu olhas pra mim e eu vejo aquele rosto de boneco feliz, o teu sorriso largo, os olhos fundos, o rosto redondo... A tua pele, o teu semblante são coisas difíceis de explicar e até de se compreender. Tu és indescritivelmente misterioso, Guarnieri. E o seu mistério também se perpetua nestes gestos automáticos de quem aceita com uma completa calma qualquer pedido que te façam, exatamente como aconteceu quando tu te sentaras defronte a mim naquela mesa de esquina:

   - Então, por que tu não desabotoas os suspensórios?

   Tu me olharas assustado, com a testa franzida, como se os gestos não pertencessem a ti.

   - Por que tu me pedes isto, senhora?

   Dei de ombros.

   Ah, Guarnieri, tu não perdes a mania de arregalar os olhos e de franzir a testa em seguida, como se um ar interrogativo inundasse as tuas faces, desejoso por uma resposta; a mania de olhar várias vezes para um ponto fixo, como se estivesse vendo algo de novo, com o mesmo ar interrogativo, o rosto franzido. Será que tu enxergas algo de novo, Guarnieri?

-   Ahn, e tira também esta camisa branca e borrada – disse eu novamente.

-   Por quê?! Tirar a camisa? Ahn, sim senhora!

   Tu desabotoaras os botões um a um, ainda em dúvida. E o teu dorso me mostrara a verdade! Tu pareces ser fabricado, Guarnieri, um ar dignamente artificial! Será que tu te conheces bem, Guarnieri?

- Não... Ah, não te mexas, acho que assim está bom... – disse eu, depois de analisar o caimento da luz de tarde sobre os teus ombros.

   O teu olhar e a tua intenção se congelaram. A dúvida permaneceu em teu semblante, Guarnieri... Uma pupila estava mais alta do que a outra e a boina escura e surrada lançou seu rosto em sombras nunca vistas antes.

- Esse nome que a senhora usa tem um motivo? – perguntaras tu, de cabeça baixa, com a boina lançando sombras sobre os teus olhos já naturalmente escuros.

- É o mesmo motivo pelo qual tu tens este nome, Guarnieri.

- Uhm... – fizeste tu, depois da tão conhecida franzida de testa, o olhar de quem tem alguma dúvida...

   Tu foste inventado, Guarnieri, feito para seguir os ponteiros do relógio... Mas para, porque eu sugiro que tu continues a perseguir o que quer que seja. Tenho alguns passos para te ensinar e talvez o público aceite te assistir. Mas a dúvida persiste, e eu realmente não sei de nada, Guarnieri. Sim, a nossa existência ainda é incerta, e não pode ser pautada com simples diálogos ao longo dos dias. Talvez juntos ou separados nas esquinas, nos Cafés, no palco, em meio às multidões. Não sei! Um palpite? Uma ideia? Por que nós não trocamos de vida, Guarnieri? É simples te aceitar, mesmo que seja aos poucos... Só é estranho ter que aceitar o modo estranho como tu te desculpas.

   Mas, não importa o que tu faças ou o que tu sejas no futuro, Guarnieri, eu continuarei do teu lado, porque, no fundo, eu sei que tu és uma pessoa boa.
 
                                                                                                                                    Camila Carelli

domingo, 4 de agosto de 2013


Cartuchos e Cigarrilhas

*

Parte III

*

Era uma luz escura e embaçada. Uma visão de mundo ausente. Tu sonhavas, Guarnieri, com múltiplos anéis em teus dedos, com correntes pesadas em teu pescoço fazendo-o cintilar mais do que o próprio sol nesta manhã de Janeiro. Olha lá pra fora, Guarnieri, e vê que já estamos em Janeiro. O começo de uma grande jornada, de um interminável mundo. E tu aí, só pensando no alumínio mais puro. Não, Guarnieri, os teus pais também não são os culpados de tudo. Talvez nem tu sejas o verdadeiro culpado. Ninguém tem culpa pela balbúrdia no andar de baixo, pela tua incapacidade em falar, pelas cadeiras velhas e vazias na sala de estar ou pelo abajur abandonado e tristonho.

Ninguém tem culpa por tu teres sonhado demais, Guarnieri. Tu não te preparaste para os imprevistos, para a chuva fora de hora ou até mesmo para a minha presença. Porque quando tu estás aí, Guarnieri, o tempo para. E eu, no fundo, sei que quando eu apareço, tu te aceleras. O tempo passa rápido quando não há novidades, e é por isso que tu continuas sendo um “ponto nulo”. Porque quando tu falas ou comentas, ou quando tu ris ou choras ninguém percebe. Ninguém percebe os teus soluços de quem vive entediado. Vizinhos fantasmas, amigos fantasmas, moradia fantasma. Até aquele mais impotente está melhor do que tu. Sim, o teu caso é sério, Guarnieri. E eu, sinceramente, acho que tu sempre desperdiças a chance de ser lembrado.

A tua loucura, a minha insanidade. O teu começo, a minha lembrança. E tudo por que tu tens memória curta. Mas eu vou fazer um favor de te lembrar: o que sai de ti não sai de mais ninguém, e isso é a mais pura verdade. Tu, Guarnieri, e os teus ares febris, a tua polidez, a tua insaciedade pelo novo, as tuas descobertas. A tua palavra morna, e a tua delicadeza de boneco recém-feito, o antigo que tu respiras, os suspensórios, a calça amarrotada, a camisa branca borrada de café. O teu perfume é a tinta acrílica ou em verniz. E seria muita hipocrisia minha dizer que tu não és bonito. A tua beleza é nobre, Guarnieri. Não é perfeita, e mesmo assim não deixa de ser interessante. Um bonito inexato na tua pele, no teu sorriso extravagante, na pinta inconveniente no canto da tua boca. A tua estranheza é rarefeita e a tua estatura baixa dimensiona o teu peso ao das galáxias.

Tu pareces ser pesado, Guarnieri, mas denso mesmo é o que tu tens dentro do coração. Tu és um talento desperdiçado, uma marionete que se esconde. Tu aí cheio de qualidades e olhando o enquadramento do outro. Ora, Guarnieri, o que tu inventas, a tua áurea é só tua! Basta a ti dar um fim nestas dúvidas, nestes encalços; porque você não é mais louco do que ninguém aqui! Tu és somente um artista nato. Um pintor de mãos hábeis, um dançarino inalcançável, um poeta inestimável. Tu amas a arte, Guarnieri, e isso deveria bastar. Mas por que não basta? Por que tu te esqueceste de quem és, do teu quinhão, da tua recompensa. Os teus olhos que só veem a exaltação alheia e que se esquece do ouro que corre nas próprias veias. Tu achas que roubaram o teu prêmio, mas, no fundo, Guarnieri, tu perdeste algo que nem tinha. Não que tu não mereças, mas nada poderia ter se materializado, pois não daria mesmo certo. Os teus segredos não podem ser assim escancarados. Tudo isso aqui é passageiro, é a terra fértil das inspirações que tanto pediu!

Aproveita, Guarnieri, porque uma chance perdida está para sempre perdida. Tu mesmo sabes a razão de tudo isso: esqueceste de admirar a ti primeiro. Jamais deixe que as pessoas decidam o que tu mereces ou que façam tu te sentires menos do que é. És só tu, Guarnieri, quem pode despertar o relógio que há dentro de ti.

Tu és um artista, Guarnieri. Lembre-se eternamente disso.

Camila Carelli

terça-feira, 16 de julho de 2013


Cartuchos e Cigarrilhas

*
Parte II

*


´Tu o conheces?` – gritou uma voz rouca no corredor em frente à sala. E eu, imediatamente, respondi: ´- Não, rapaz, porque eu desconheço a dimensão exata da minha tristeza.´

Muitos já me questionaram, durante as minhas andanças pelas ruas, calçadas e vielas desta cidade, se tu, Guarnieri, eras visível. E eu despretensiosamente sempre respondi que isso dependia, sim, dependia simplesmente do sentimento que se tinha guardado dentro do peito, se muita tristeza ou muita alegria. Ou talvez daquela solidão muda, imperceptível aos olhos alheios.

E então, Guarnieri, eu te apontava para aquelas senhoras de guarda-chuvas sombrios, em meio àquela multidão, que se movia sem rumo para um destino qualquer. E aquelas senhoras me olhavam com um ar de dúvida, como a me perguntar o quão louca eu estava. E eu te via, tentava mostra-lo àqueles jovens rapazes, às moças de vestidos rendados na base dos joelhos. E nem aquelas pequenas crianças quiseram dar ênfase à minha confusão, pois fingiram não te ver também. E sempre que a chuva caía, eu te perdia de vista. Perdia-te em meio àquela confusão molhada, lotada de chapéus, guarda-chuvas, casacos e coturnos escuros. Eu sei que tu sumias só por que era eu. Era eu, e ponto final. Tu percebias a minha respiração ofegante, os meus ombros soterrados naquele sobretudo velho e caído dum modo grosseiro, os meus cabelos desgrenhados e repartidos... Sim, tu fugias da tua realidade mais cruel.

Mas a voz sempre grita: - Tu o conheces? O que eu deveria dizer, Guarnieri? Uma mentira ou talvez uma hipótese? Nunca te esqueças, jovem: fatos são fatos e hipóteses são hipóteses... E nada transcende esta afirmação exata. A vida não pode ser uma conta exata, e as tuas realidades são apenas a continuação disso. Continuação daquilo que tu escondes, Guarnieri, porque se tu foges é por que tem algo a esconder. Encara ou resiste, mas nunca desistas. Para, talvez. Ah, Guarnieri, eu te disse que as coisas não seriam assim, daquele jeito soluçado, planejado em papel milimetrado. Porque, no fim, não é possível brincar de esconde-esconde e fingir se divertir. É necessário abrir os olhos e mergulhar nestas imensidões, nestes colapsos súbitos de quem escolhe por viver.

Guarnieri, eu só queria te encontrar e esclarecer-te que a calma e a bondade ainda estão por aqui. Joga fora de vez os cartuchos; apaga os cigarros. Para de vez. Esquece isso que insiste em ficar. E também este amor caro que custa mil notas de real, alguns euros, muitos outros cruzados e milhares de libras esterlinas.

Tu, Guarnieri, no fundo, tens medo da brevidade. Mas suspende os teus suspensórios e continua a tua viagem.
 
Camila Carelli

domingo, 14 de julho de 2013





Eu sou agora o ponto distraído que tomou a noite toda. Engoli o silêncio e cada ponto de luz do que antes era uma belíssima avenida. Deflagrei o medo no cúmulo da noite, e persegui cada mínima esperança que descansava entre os cantos. Mas eu confesso a cada um de vocês que, pelo menos para quem olha para esse rosto cansado e retorcido, nada disso surtiu tanto efeito quanto as explosões de puro aço em direção ao céu. Posso ainda tentar definir o que sou neste momento, ou melhor, o que resta de mim.
Eu sou mil cabeças de ferro emplastradas de puro ódio, agulhas estilhaçadas na dor de quem nem conheci ou o apito infantil de quem tenta parar o sofrimento que anda por estas terras, ou talvez o grito de vitória que logo vai ecoar. Mas eu, sinceramente, não acredito em qualquer uma dessas promessas ditas por aí, as quais chegam ao meu ouvido como se fossem uma brisa leve, porém agudas em seu sentido absoluto. Por que nenhum daqueles homens realmente sabe, ou ao menos se interessa pelo que acontece um pouco mais abaixo dos seus propósitos cheios de ganância. E enquanto isso, eu vou retorcendo o sofrimento, e dizendo coisas inexplicáveis somente com o uso de palavras. Todo o acaso é estúpido, e as verdades estão sempre a um passo de se tornarem mentiras.
E nessa altura, eu já não sei se isso tudo é uma guerra política, ou uma luta pessoal. Uma luta feita de metais pesados, de frios matinais e noites solitárias. É assim que eu vivo, e se alguém por acaso me perguntasse se eu gostaria de voltar atrás, eu diria claramente que sim. Voltar talvez para a calma da paz, dos sonhos apaziguados e para o antigo conceito de amizade. Voltar e não ter que sentir o ponto morno de quarenta e três balaços perfurando direto o meu coração. Ou sofrer todos os dias metamorfoses contínuas, e então descobrir que estou coberto por superficialidade.

Cada mentira, para mim, é um ponto quente que me revela a incapacidade de compreender qualquer movimento ou gesto de abandono. E sei que estou cercado por palavras e suspiros nem um pouco legítimos. Mas nada posso fazer. Apenas espero pelo fim do dia, enquanto penso em cada um daqueles rostos marcados por uma angústia sem fim, e é exatamente neste momento que percebo que a morte mora no tempo presente. O meu tempo agora está acabando, e eu termino por confessar que o apontar desses quarenta e três fuzis é pura covardia. Não, eu não acho que eu mereça. Sou só uma alma predestinada, e que se recusa a morrer por qualquer enfermidade terrena. Ah, sim, e se alguém lhes disser que logo a minha pulsação salvará qualquer erro momentâneo, saibam somente de uma coisa: tudo isso é pura demagogia.

Camila Carelli

domingo, 14 de abril de 2013

  

Estandarte II


 I
 
Subi, muitas vezes, àquela montanha esparsa
Caminho enevoado pelo semblante de um sol ardente
Rubros pássaros, recantos resguardados
Só, ao grito de uma nesga intrépida nevasca
E me ceguei, me cegaram, naquele prisma ambivalente.
 
Minha vida corria numa espiral louca, e,
Logo me fechei apertado,
Naquele grito sufocado por todos os passos noturnos.
 
Correntes de ínfimas dúvidas, sobressaltado no meio da noite,
Mãos de pedra, coração gelado, destino tenebroso
Assombravam-me os pingos de chuva, gelados e aflitos na pele
Vivia, eu, na sombra dos meus temores, sim,
Um jazigo coberto dentro de mim mesmo.
 
No embalo pausado desta perseguição
Não ouso sentir o bolso, no qual
Estão bem resguardadas as balas da minha caçada
Ó, alvorada bélica!
Céu turvo, sulcos e trilhas ambíguas!
 
Roubam-se os corações famintos
Trancafiados na asa da águia
Alinhados ficam os canhões
Que por desatino alucinam a alma
 
                   
 II
 
Agora, clarinetas estouram nas trilhas da noite, e
o céu desperta talvez em nova alvorada
Mas eu, aqui, assusto-me com a cantoria
Ao longe dos trompetes macabros.
 
Aviva-me, ó azul do Estandarte ao Sul!
Ó, ira profunda dos meus abismos!
Vermelho do Estandarte ao Sul!
Fortalezas desse oceano imenso!
 
Escuta, agora, a honra despertar, e
O ritmo borbulhante das armas...
Perfurando o ar, alçando almas ao Senhor
O replicar das bombas nesta terra enferma
Fecundando o chão com este sangue moribundo
Guerreiros, vós sois!
 
                   
III
 
Um novo capítulo rente ao espaço
Descompassos de fé
Decisões de antemão
 
Fácil agora seguir pela curva,
Trilhas angulares
Uma pedra a desviar pelos calcanhares
 
Pois me vem a visão do morto
De encontro à minha face translúcida
Sem robustez, quadros de cor
E que assim ficou sem luz
 
Não é a morte, que
Encontra-me depois
É ela, o clarão da vida
Um risco de sombra em mim
 
Acordo! Um júbilo para teus lábios
Felicitá-la pelos teus temores
Unidos neste eterno já soído
Não mais o encontro da própria voz
 
                   
 IV
 
Em suma a minha história
Meu caminho à própria morte
Remanso de cristais
Sozinho, a solitude no meio da noite
 
Pois que me acompanhará o clarão do fuzil,
Uma bala me espicaça e fere
Um jorro de sangue anil, que
Estampa esta pele de silício
 
Um silvo me recurva
Penso: -Adeus, Mabelle!
E cimento ao chão
Com o peso deste corpo,
De soldado não alforriado
 
Só digo-lhes: - Não retalhem esta face moribunda
Eterno ser, em cores sombreadas
Cabelos revoltos, pele terrena
Ritmo calculado na multidão do exército
Porque mais tarde eu volto a ser o capitão dos exilados!
 
                   
 V
 
Agora eu percebo as desventuras a que ameaço
Onde jaz o obelisco dos meus afazeres
Confesso, sim, o martírio da guerra
Das manifestações descabidas
Da amargura inegável, o ódio epidêmico
Ah, a minha alma implora aos céus!
Piedade desta criatura peregrina
Que soa o clarim, que faz somente o que não quer
Ah, guerreiro! Luz divina sobre ti, Barbosa!
 

*Esta poesia foi selecionada para compor a antologia do V Prêmio Canon de Poesias (2012), organizado pela Fábrica de Livros (do grupo editorial Scortecci), em parceria com a Canon do Brasil.

quarta-feira, 27 de março de 2013


"Provavelmente, é lícito dizer que, em todos os anos do império de Hitler, nenhuma pessoa pôde servir ao Führer com tanta lealdade quanto eu. O ser humano não tem um coração como o meu. O coração humano é uma linha ao passo que o meu é um círculo, e tenho a capacidade interminável de estar no lugar certo na hora certa. A consequência disso é que estou sempre achando seres humanos no que eles têm de melhor e de pior. Vejo sua feiúra e sua beleza, e me pergunto como uma mesma coisa pode ser as duas. Mas eles têm uma coisa que eu invejo. Que mais não seja, os humanos têm o bom senso de morrer.

Trecho do livro 'A menina que roubava livros' - Marcus Zusak

"Como a maioria dos sofrimentos, esse começou com uma aparente felicidade."
 
Trecho do livro 'A menina que roubava livros' - Marcus Zusak

"Dizem que a guerra é a melhor amiga da morte, mas devo oferecer-lhe um ponto de vista diferente a esse respeito. Para mim, a guerra é como aquele novo chefe que espera o impossível. Olha por cima do ombro da gente e repete sem parar a mesma coisa: 'Apronte logo isso, apronte logo isso.' E aí a gente aumenta o trabalho. Faz o que tem que ser feito. Mas o chefe não agradece. Pede mais."

Trecho do livro 'A menina que roubava livros' - Marcus Zusak

"A morte não espera por ninguém - e, quando espera, em geral não é por muito tempo."

 Trecho do livro 'A menina que roubava livros' - Marcus Zusak

sábado, 2 de março de 2013


Cartuchos e Cigarrilhas

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Parte 1

*

Ah, tu, que tinhas os olhos no paraíso. Ah, sim, tu, que eras aquela criança graciosa e de múltiplos sorrisos, admirada pelas mais finas pessoas que cabiam na realidade. Tu que eras um futuro premeditado, uma aspiração do mais puro talento. E não, não faz muito tempo, e agora é difícil entender o porquê deste presente.

Sim, este presente que no fundo te assombra. Tu, que pensavas em ser um usufruto da mais cordial, fiel espécime de gente. Até que em fins de outono, tu acordaste, e que como uma nuvem de chuva que atravessa o deserto, viu-se em meio a um oceano de tristes e melancólicas ondas que te traziam, sem dúvida, a surda voz da realidade. Concordo como há momentos que não se esquece, como aquele momento em que levantamos de um sonho. Sim, tu estavas deitado naquele fardo, e percebeste então que os teus pés estavam notoriamente amarrados. Ah, sim, tu percebeste que as veias das tuas pernas corriam como grandes serpentes azuis para a borda da epiderme, como se quisessem infiltrar todo o medo dentro de ti. Sim, agora tu percebes. Logo tu, que pensavas em admirar o horizonte ao longe, quando somente via os riscos das rabiolas daquelas pipas no ar. Logo tu que poderias ter alçado voo naquele céu!

Sim, agora tu te viras de lado, e uma náusea te percorre, mostrando que o quê supostamente existia era a mentira mais óbvia. Tão óbvia como o cheiro de mofo que inunda as tuas narinas, como a poeira que percorre as janelas como um véu malogrado. Logo tu que pensavas em retratos, cores e bordas. Mas isto aqui é somente um cômodo, e tu não tens nem um interruptor pra iluminar o vazio da tua voz. Logo agora que se faz impossível enfrentar a solidão com um grito atroz de desespero. Neste lugar que não é mais do que uma prisão, com uma vidraça embaçada e paredes trincadas pela umidade que percorre a parede desde o mais alto canto, e que enregela o ar. Ah, o ar frio de inverno! As constelações apagadas sobre as nossas cabeças! Um som nunca é motivo para esperança. E muito menos este som de água que se reparte entre as encanações corroídas, lembranças de um tempo em que o oceano parecia estar próximo demais!

Ah, sim, logo tu que poderias ter trazido uma fagulha de luz para o mundo, mesmo que olhando daquela fechadura minúscula que trancafiava as emoções solenes do coração. Porque agora o único som que tu pareces ouvir é o deste soluço, mudo e surdo, que ecoa de dentro de ti sem a menor das complicações, e que se infiltra nas tocas dos ratos, que te atacam os pés, os dedos. Ah, sim, e também os teus olhos que não são mais brilhantes do que o azul do céu.

Ah, Guarnieri, Guarnieri... Agora não adianta mais tu tentares acender aquela cigarrilha, pois a fumaça não traz o dia revolto. Não adianta, pois as cores do cartucho são muito manchadas quando vistas pelos teus olhos...

Guarnieri, tu sabes a verdade que está escondida talvez lá fora, na rua. Ou debaixo dos pés sujos e pesados. Seus pais... A família... Tudo é maior e mais simples do que parece.

Ah, sim, Guarnieri, eles te enganaram a vida inteira. E só agora tu percebeste que és apenas mais um “ponto nulo” no Universo. 
 
Camila Carelli