Compasso de Carretéis
Mas era assim. Chegava a hora, e também o desespero. No começo sofreu calado, vendo de longe o campo limpo e o quartel muito distante, muito ao fundo. No céu, as nuvens sempre baixas e os relâmpagos que lançavam clarões intermitentes, ameaçando cair inesperadamente. Mas, indiferente à situação geral, a tarefa consistia em pegar o cordão afundado na lama fria e puxar os carretéis, pesados como troncos de árvore, que distendiam seus braços e enrugavam sua testa. E ouvir o barulho enlouquecedor das suas botas ensopadas pela chuva fina que começava a cair.
Estava sozinho naquela labuta com um sentimento estranho que crescia dentro dele conforme o passar dos dias, imperceptivelmente, parecido com um apego doentio a tudo aquilo, à tarefa, ao lugar, à rotina, como um verme que se instala no corpo fraco e debilitado: uma briga entre o cansaço evidente em seu rosto, tão sério e singularmente demarcado. Sim, uma metamorfose em um simples soldado que confunde suas ideias com os ideais da pátria. O apego aos carretéis era o veneno já corrente em suas veias, uma ideia oculta em seu peito, uma ordem ecoada ao som do vento. O ódio! O prazer em submeter a si e aos outros. Puxar os carretéis, marchar no ritmo da chuva, pisar nas poças como quem pisa em almas de inocentes. Correr... Correr... Andar... Em círculos... Até que os olhos fossem apenas a personificação dum vazio, da desesperança. Ah, os olhos negros que podiam denunciar a verdade!
Depois de uma semana naquilo, não sentia mais o peso da consciência, o peso da morte, o peso da chuva, a presença da dor, da força, o calor do seu corpo, a cor das suas botas, o barulho ritmado dos carretéis. Era só andar e não olhar para trás. Ele era o círculo e também parte dos carretéis, tão insensível e automático quanto eles. Agora não contava os minutos para sair dali, para terminar a tarefa cumprida, e não queria saber o que mais havia por fazer. Não queria sair daquela umidade que empapava seu uniforme e lhe inflamava os nervos, daquele frio que lhe dava coceiras. Não! Ele queria ficar, nem que fosse pela eternidade, pela contagem infinita de todos os planetas. Era ele e os carretéis! Queria sentir a guerra, o calor da pólvora, amaldiçoar a chuva e o inimigo. Ah, aqueles que o detestavam!
E faltava tempo, muito tempo, muitos passos a mais. E rodava em círculos... Agora se sentia pronto para a marcha, como uma máquina pronta para espalhar o terror. O ódio continuava a crescer dentro dele, quanto mais puxava os carretéis e fazia seu corpo sofrer. Ódio daquela situação injusta, daquele sacrifício sem nome e objetivo, ódio daqueles que fingiam ser patriotas, ou sentir compaixão.
Mas de repente, como se os carretéis tivessem dado uma ordem, ele sentiu suas pernas pararem com a corrida maníaca, e se deparou com uma enorme poça de água cristalina apesar da lama que a rodeava. E ao abaixar o rosto percebeu o reflexo de um rosto muito sério e magro coberto por uma pele amarelada que se assentava muito bem em cima dos ossos, o que ocasionava formação de linhas e encovas quando sorria. Reconheceu de algum lugar aquelas maçãs do rosto que se destacavam conforme sorria. Não se conhecia mais, era óbvio, porém percebia as garras do ódio que o perseguiam, perseverantes.
Crescia a alma dum soldado no compasso dos carretéis. Os carretéis que já conheceram em algum momento o que era a guerra.
Camila Carelli
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