domingo, 4 de agosto de 2013


Cartuchos e Cigarrilhas

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Parte III

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Era uma luz escura e embaçada. Uma visão de mundo ausente. Tu sonhavas, Guarnieri, com múltiplos anéis em teus dedos, com correntes pesadas em teu pescoço fazendo-o cintilar mais do que o próprio sol nesta manhã de Janeiro. Olha lá pra fora, Guarnieri, e vê que já estamos em Janeiro. O começo de uma grande jornada, de um interminável mundo. E tu aí, só pensando no alumínio mais puro. Não, Guarnieri, os teus pais também não são os culpados de tudo. Talvez nem tu sejas o verdadeiro culpado. Ninguém tem culpa pela balbúrdia no andar de baixo, pela tua incapacidade em falar, pelas cadeiras velhas e vazias na sala de estar ou pelo abajur abandonado e tristonho.

Ninguém tem culpa por tu teres sonhado demais, Guarnieri. Tu não te preparaste para os imprevistos, para a chuva fora de hora ou até mesmo para a minha presença. Porque quando tu estás aí, Guarnieri, o tempo para. E eu, no fundo, sei que quando eu apareço, tu te aceleras. O tempo passa rápido quando não há novidades, e é por isso que tu continuas sendo um “ponto nulo”. Porque quando tu falas ou comentas, ou quando tu ris ou choras ninguém percebe. Ninguém percebe os teus soluços de quem vive entediado. Vizinhos fantasmas, amigos fantasmas, moradia fantasma. Até aquele mais impotente está melhor do que tu. Sim, o teu caso é sério, Guarnieri. E eu, sinceramente, acho que tu sempre desperdiças a chance de ser lembrado.

A tua loucura, a minha insanidade. O teu começo, a minha lembrança. E tudo por que tu tens memória curta. Mas eu vou fazer um favor de te lembrar: o que sai de ti não sai de mais ninguém, e isso é a mais pura verdade. Tu, Guarnieri, e os teus ares febris, a tua polidez, a tua insaciedade pelo novo, as tuas descobertas. A tua palavra morna, e a tua delicadeza de boneco recém-feito, o antigo que tu respiras, os suspensórios, a calça amarrotada, a camisa branca borrada de café. O teu perfume é a tinta acrílica ou em verniz. E seria muita hipocrisia minha dizer que tu não és bonito. A tua beleza é nobre, Guarnieri. Não é perfeita, e mesmo assim não deixa de ser interessante. Um bonito inexato na tua pele, no teu sorriso extravagante, na pinta inconveniente no canto da tua boca. A tua estranheza é rarefeita e a tua estatura baixa dimensiona o teu peso ao das galáxias.

Tu pareces ser pesado, Guarnieri, mas denso mesmo é o que tu tens dentro do coração. Tu és um talento desperdiçado, uma marionete que se esconde. Tu aí cheio de qualidades e olhando o enquadramento do outro. Ora, Guarnieri, o que tu inventas, a tua áurea é só tua! Basta a ti dar um fim nestas dúvidas, nestes encalços; porque você não é mais louco do que ninguém aqui! Tu és somente um artista nato. Um pintor de mãos hábeis, um dançarino inalcançável, um poeta inestimável. Tu amas a arte, Guarnieri, e isso deveria bastar. Mas por que não basta? Por que tu te esqueceste de quem és, do teu quinhão, da tua recompensa. Os teus olhos que só veem a exaltação alheia e que se esquece do ouro que corre nas próprias veias. Tu achas que roubaram o teu prêmio, mas, no fundo, Guarnieri, tu perdeste algo que nem tinha. Não que tu não mereças, mas nada poderia ter se materializado, pois não daria mesmo certo. Os teus segredos não podem ser assim escancarados. Tudo isso aqui é passageiro, é a terra fértil das inspirações que tanto pediu!

Aproveita, Guarnieri, porque uma chance perdida está para sempre perdida. Tu mesmo sabes a razão de tudo isso: esqueceste de admirar a ti primeiro. Jamais deixe que as pessoas decidam o que tu mereces ou que façam tu te sentires menos do que é. És só tu, Guarnieri, quem pode despertar o relógio que há dentro de ti.

Tu és um artista, Guarnieri. Lembre-se eternamente disso.

Camila Carelli

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