segunda-feira, 23 de dezembro de 2013


Mãos de Café

 

Rumo Leste – Braço da Estrada

Março 1945 – Verão

 

A tua singularidade é perpendicular à minha, Barbosa. Conversei contigo da última vez, mas tu não me ouviste. Expliquei-te os caminhos, mas a teimosia falou mais alto. E mesmo que não voltes gostaria de dizer que já és eterno. Um pedaço teu já ficou para depois. Mas de borrão fazem-se as minhas lembranças. Borrão de café ao meio-dia. E as minhas mãos gostariam de silenciar o barulho atroz de algo que explode dentro de mim, mas eu também me esqueço; esqueço-me da incapacidade das minhas mãos de café.

Talvez o meu talento seja descobrir-te. Forçar-te um sorriso, mesmo que falso aos olhos dos anjos que conversam comigo. Estou à beira da tua ausência há muito tempo. É inegável o nosso fracasso, não? Mas é preciso coragem para galgar os degraus do mundo. Avisei-te. Agora é tarde, a carta chega com atraso de uma vida inteira, mas eu não perco a chance. Tu resolveste ir e isto é fato. As consequências não são minhas, porém eu não nego o milagre dos meus conselhos.  O começo é o mapa desenhado nas tuas costas, indicando sempre o cuidado com o precipício do lado direito. A montanha é o júbilo da força dos teus braços. E a vitória só a Lua tem o poder de descrever em linhas garrafais. Então encontra a Lua, Barbosa!  E me sussurra a resposta!

E me deixa ir, porque é hora de conversar com as velas debaixo das cadeiras. Ninguém sabe que estou aqui desde que tu saíste. Um dia será tarde demais, algum pressentimento rasteiro me diz. Um dia as roupas não farão mais sentido em meu corpo. E tu irás lamentar, Guilherme. As tuas lágrimas não serão suficientes para lavar a minha agonia. Mas faz ao menos uma vez o que eu te digo. Tu sabes que eu levaria tudo isso comigo se eu pudesse, limparia as ruas, o iluminar das velas, acenderia o escuro pra ti, mas não posso.

O mundo recai em nós, Barbosa, e nenhuma estrela aparece se estivermos ausentes. É inútil insistir na frequência dos batimentos dos nossos corações. Jaz aqui meu último suspiro. Espero-te mesmo manchada pelos borrões que escorrem pelos rodapés do nosso quarto. Decresce nesta hora, com certeza, o meu desespero, e resvala assim o meu sangue na tua boca tão quanto é intenso o meu pedido aos céus.

 

Dona Mabelle

Vila dos Açores

Março de 1945
 

Camila Carelli

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