domingo, 20 de outubro de 2013



Cartuchos e Cigarrilhas

 
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Parte V

 
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Os copos não vão se encher sozinhos, Guarnieri, só por causa do teu desespero. É um desperdício de tempo falar contigo, que quase nunca escuta. E é também perca de tempo olhar pra ti, que quase nunca percebe. O sonho que se acalenta e que se perde é como uma gaivota a ganhar os céus e que não vai pousar de novo. Voar para sempre? Pousar para sempre? Pouco importa estas coisas que não mudam a natureza das coisas ou a essência do copo...

A confusão das borboletas, a metamorfose das nuvens, a pessoa que grita do outro lado, o sussurro vazio dos pescadores de almas. E andar com os próprios pés não está bastando, mesmo que seja noite ou dia. O rompimento da luz na tua janela continua, acalentando os teus temores, insensível ao mundo lá fora. Tu tens medo, Guarnieri, do que é altamente vendável? A compra de móveis, de utensílios, de mantimentos, a troca incansável de moeda velha e suja que causa pequenos desastres no corpo de quem apenas observa. Ah, Guarnieri, se eu fosse tu, eu trocava o carpete sujo, as xícaras meladas e aquele abajur queimado da tua casa, que são como moradores de semblante e alma apaziguados demais para o mundo agitado e inteligente que se passa alguns andares abaixo do teu.

Porque a desgraça, Guarnieri, às vezes é algo que nós escolhemos. Quem escolhe as tuas roupas, Guarnieri? E os teus gestos, a tua iminência, a tua ausência, confusão, pressa e dúvidas? Quem escolhe? Duvido da tua verdade, seja qual for o lugar que tu a escondeste... Nada em ti, Guarnieri, possui som ou vida. O som da vida se esvaziou há muito tempo, sobrando apenas as borras de café na tua camisa branca, os móveis cansados de apenas estarem parados, a velhice imunda que inunda a tua sala de estar, e que denunciam o vazio, as linhas confusas dentro do teu peito.

Que cheiro de tragédia é esse? Arrastando-se debaixo da porta, penetrando os átomos de poeira, do próprio ar. Cadê nós nesta peça? Haverá um dia, Guarnieri, que a tua displicência com a vida acabará por consumi-lo, até que sobrará de ti um monte de panos. Mas hoje, não sei por que não tenho pena de ti. Apenas de mim.

Ah, Guarnieri, apressa os passos e troca logo os copos. Jamais espera. E chama logo o Doutor Colleman, porque eu preciso falar com ele.

Camila Carelli

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