Ainda
me lembro do dia em que Mabelle virou um jorro de tinta. Leve assim, se desfez.
Misturando-se às matizes do dia, gota a gota, segundo por segundo. Levando consigo
a alegria daquele veraneio que acabava de se anunciar. No céu, aquele azul
claro, e no ar, aquele cheiro agridoce. Era o mesmo lugar de outrora, e ela com
o mesmo ar de sempre. Eu chegara sem avisar, assim de surpresa, vagarosamente,
com medo de desmanchar aquela imagem tão perfeita, cuidadosamente planejada. Sentei-me
então ao lado dela que parecia estar horas naquela posição imóvel. Ficamos sentados
no degrau daquela mesma escada, do pequeno casebre em que ela dizia que morava,
mudos naquele silêncio que sempre imperava por ali. Esperei pela primeira
palavra que ela diria, mas senti que esperei demais.
Nada
havia para fitar naquele espaço exageradamente iluminado. Olhei para meu coturno,
como se aquela fosse minha última vontade. Cada folha seca que caia ao chão era
como um grito mudo. Não sei por que, mas olhei para Mabelle naquele instante. Aqueles
olhos de pedra, inexpressivos. Fios de cabelo acinzentados que o vento gélido
jogava em minha direção. Pensei em toca-la, mas sabia que ela se partiria ao
menor toque de minha mão. Como num prenúncio, senti que ela estava mais fria do
que o normal. Exageradamente pálida. Seus olhos eram o reflexo de um vazio que
eu só encontrava em mim. Fiquei ali quieto, como se esperasse por algo,
sentindo o orvalho que caia como uma brisa, as gotas de chuva que já ensopavam
meu casaco.
E
assim foi tão instantâneo que eu nem percebi. Preferi nem pensar. Não sei por
que ela partira daquela forma. Foi-se de vez. Desprendendo-se de si mesma, era
uma grande mistura de cores. Tons frios. Um pouco de cinza, amarelo, azul,
verde. Tudo misturado ao mesmo tempo, escorrendo degrau por degrau escada
abaixo. Um borrão de tinta fresca que se unia àquele inverno presente em pleno
verão. Como se quisesse mostrar à tempestade a sua ausência. Mabelle partira, e
as ventanias matinais que agora sacudiam o cenário geral, tomaram o seu lugar. Um
frio repentino parecia também querer congelar tudo. Árvores frondosas se
debatiam frente a mim. Quando eu vi, a enxurrada que se formara levara tudo embora,
não se via mais cor alguma; era como uma destruição mútua.
Então,
como num pressentimento, eu precisava sair dali. Fugir daquela mentira, daquele
lugar que não pertencia mais a mim. A paisagem se transformava como um quadro
bagunçado pelo tempo. Meus olhos não percebiam mais nada. Ventos de todos os
lados me distraiam, e sonhos exagerados conversavam comigo. Cada tábua daquele
casebre agora tinha sua música própria. Vasos tombavam e eram arrastados
também. Janelas disformes se debatiam sem parar, até que uma se soltou e caiu,
lançando lascas de madeira por todos os lados. Continuou assim, até que o tudo
se transformou num turbilhão de sons, imagens e gotas. Gotas únicas. Disformes.
E bélicas no seu sentido mais obtuso. Tentei parar, mas entrei numa espiral de
memórias e ali fiquei. Nem ao menos tentei saber se Mabelle voltaria. Se fosse
pra ser assim, que fosse então.
A
guerra me trouxera o que existe de mais incrível em cada canto escondido por
aí. Mas por maior que seja o tempo, eu jamais me esqueceria do dia em que
Mabelle se tornara um jorro de tinta. E assim, consigo levara minhas dúvidas, e
marcara em minha pele a sua presença de tantas horas. No fundo, eu sabia que
suas lágrimas faziam parte daquela tempestade que viera trazer um novo cenário,
novos prismas de cor. Uma pequena destruição que trazia grandes mudanças. Pequenos
fragmentos de felicidade que se irradiavam em cada canto. E que, de qualquer
modo, já pertenciam a mim.
Camila Carelli