domingo, 26 de julho de 2015


 Gota, Tinta e Veraneio

 


Ainda me lembro do dia em que Mabelle virou um jorro de tinta. Leve assim, se desfez. Misturando-se às matizes do dia, gota a gota, segundo por segundo. Levando consigo a alegria daquele veraneio que acabava de se anunciar. No céu, aquele azul claro, e no ar, aquele cheiro agridoce. Era o mesmo lugar de outrora, e ela com o mesmo ar de sempre. Eu chegara sem avisar, assim de surpresa, vagarosamente, com medo de desmanchar aquela imagem tão perfeita, cuidadosamente planejada. Sentei-me então ao lado dela que parecia estar horas naquela posição imóvel. Ficamos sentados no degrau daquela mesma escada, do pequeno casebre em que ela dizia que morava, mudos naquele silêncio que sempre imperava por ali. Esperei pela primeira palavra que ela diria, mas senti que esperei demais.

Nada havia para fitar naquele espaço exageradamente iluminado. Olhei para meu coturno, como se aquela fosse minha última vontade. Cada folha seca que caia ao chão era como um grito mudo. Não sei por que, mas olhei para Mabelle naquele instante. Aqueles olhos de pedra, inexpressivos. Fios de cabelo acinzentados que o vento gélido jogava em minha direção. Pensei em toca-la, mas sabia que ela se partiria ao menor toque de minha mão. Como num prenúncio, senti que ela estava mais fria do que o normal. Exageradamente pálida. Seus olhos eram o reflexo de um vazio que eu só encontrava em mim. Fiquei ali quieto, como se esperasse por algo, sentindo o orvalho que caia como uma brisa, as gotas de chuva que já ensopavam meu casaco.

E assim foi tão instantâneo que eu nem percebi. Preferi nem pensar. Não sei por que ela partira daquela forma. Foi-se de vez. Desprendendo-se de si mesma, era uma grande mistura de cores. Tons frios. Um pouco de cinza, amarelo, azul, verde. Tudo misturado ao mesmo tempo, escorrendo degrau por degrau escada abaixo. Um borrão de tinta fresca que se unia àquele inverno presente em pleno verão. Como se quisesse mostrar à tempestade a sua ausência. Mabelle partira, e as ventanias matinais que agora sacudiam o cenário geral, tomaram o seu lugar. Um frio repentino parecia também querer congelar tudo. Árvores frondosas se debatiam frente a mim. Quando eu vi, a enxurrada que se formara levara tudo embora, não se via mais cor alguma; era como uma destruição mútua.

Então, como num pressentimento, eu precisava sair dali. Fugir daquela mentira, daquele lugar que não pertencia mais a mim. A paisagem se transformava como um quadro bagunçado pelo tempo. Meus olhos não percebiam mais nada. Ventos de todos os lados me distraiam, e sonhos exagerados conversavam comigo. Cada tábua daquele casebre agora tinha sua música própria. Vasos tombavam e eram arrastados também. Janelas disformes se debatiam sem parar, até que uma se soltou e caiu, lançando lascas de madeira por todos os lados. Continuou assim, até que o tudo se transformou num turbilhão de sons, imagens e gotas. Gotas únicas. Disformes. E bélicas no seu sentido mais obtuso. Tentei parar, mas entrei numa espiral de memórias e ali fiquei. Nem ao menos tentei saber se Mabelle voltaria. Se fosse pra ser assim, que fosse então.

A guerra me trouxera o que existe de mais incrível em cada canto escondido por aí. Mas por maior que seja o tempo, eu jamais me esqueceria do dia em que Mabelle se tornara um jorro de tinta. E assim, consigo levara minhas dúvidas, e marcara em minha pele a sua presença de tantas horas. No fundo, eu sabia que suas lágrimas faziam parte daquela tempestade que viera trazer um novo cenário, novos prismas de cor. Uma pequena destruição que trazia grandes mudanças. Pequenos fragmentos de felicidade que se irradiavam em cada canto. E que, de qualquer modo, já pertenciam a mim.
 
Camila Carelli

domingo, 19 de julho de 2015


A Hora da Verdade

O tempo é constante e só para do lado de fora do prédio. Tu ficas na sacada a olhar para o horizonte cinzento e que desabrocha pra dentro da tua janela, escurecendo e sujando tudo, como se a tua vida fosse a tinta que borrou o quadro certo há muito tempo. E a gente vai assim, Guarnieri, andando a passos largos, tentando compreender o que acontece na balbúrdia da cidade central. E tu ainda na sacada, praguejando contra o universo, como se alguém lá embaixo, um pouco mais ao longe, tivesse que assumir a culpa pelos teus erros. Mas não é assim. Existe um tempo certo, e quanto mais tu persegues a fórmula ideal, mais tu te perdes. Eu te ajudei a tentar apagar os enganos que vieram com os acertos; deixei-os simplesmente abandonados a um canto, naquele pedaço da memória que rezamos para que esteja sempre ausente.

Mas é estranho, Guarnieri, quando a gente para um segundo pra pensar em cada coisa que nos rodeia. É como se cada detalhe lá fora guardasse um pouco da tua culpa, e insistisse em empurrar tudo novamente janela adentro. E tu sabes, Guarnieri. Estamos ambos subitamente suspensos, tão mais errados ou certos do que cada objeto dentro da tua morada. E agora de nada adianta esse teu jeito de ser, de quem está sempre aquém da própria realidade; de quem tenta se encaixar na própria roupa e que não resiste a se embebedar com a tinta que escorre por dentre teus dedos.

Por que, no último segundo, tudo sempre dá errado. Tu me puxas pelo braço, tentando me fazer entender o teu silêncio mudo. Mas eu já te expliquei que não vai adiantar tu ficares trancado na sala ou ficar vagando pelas ruelas vazias e úmidas com o intuito de ser esquecido por todos. Pois, ainda sim, haverá olhos em cada esquina e sombras no teto do teu quarto a te cobrar pelas migalhas que tu jogaste fora ou que tu negaste a compartilhar. Será sempre assim, até chegar a hora da verdade que só tu conheces.

Infelizmente, é assim. Mas por mais difícil que seja o caminho, Guarnieri, não significa que não tenha uma saída. Talvez seja apenas questão de esperar pacientemente na próxima esquina. Mas não. Ah, Guarnieri, se eu fosse tu, jogava tudo pro alto. Subia na ponta dos pés e ameaçava me jogar lá de cima. Apostava alto toda a miséria da tua fortuna. Pois, talvez assim, uma resposta coerente resolva se aproximar. Restam as dúvidas, e toda a confusão que vem lá de cima. Pensando assim, me recorreu uma ideia: não sei se tu reparaste, mas parece que está todo mundo girando pro mesmo lado. E se a gente resolvesse girar pro lado contrário, Guarnieri?
 
Camila Carelli