sexta-feira, 20 de março de 2015


A Morada de Mabelle

 

  
Ao amanhecer, era como se centenas de balões vermelhos tivessem subido aos céus; lançados assim, aos montes, por mãos inocentes que agora  não podiam tocar nada a não ser aquela terra erma e fria. Fiquei minutos olhando para aquilo, fixamente, perdido entre os minutos e as horas que passavam cada vez mais devagar. E então, simplesmente decidi. Como alguém que abandona a cena do crime, me retirei rapidamente dali e decidi que iria encontrar Dona Mabelle. Sábias decisões são tomadas num instante. Mas logo, eu não teria tanta certeza daquilo.

   Atravessei a floresta despedaçada sob um céu repleto de nuvens tristes e esbranquiçado, como se feito de gelo. Parecia que sabia dos desastres que aconteciam ali embaixo. E assim fui, em passos largos, até que cheguei a uma trilha tortuosa e muito estreita. Segui-a até o final. Quando parei, lá estava eu defronte uma choupana de madeira, um tanto torta, um tanto perdida. Fiquei confuso, mas sim, só podia ser ali a tal morada da qual ela me falara da outra vez.

   Nada havia ali de solitário. Nem de assustador. E muito pouco romântico também. Fiquei surpreso com a clareza da própria realidade que ali se encontrava. Cores quentes. Uma mistura de tragédia e esperança que fazia o vazio despencar aos montes. Raios de sol corriam diante de meus olhos e uma brisa suave acordou-me para a umidade tão presente ali. Gotas de orvalho percorriam as trincas da parede, e torrões de terra manchavam o branco puro da morada. Fiquei esperando algum tempo, até que decidi verificar se Mabelle realmente estava ali. Subi os degraus curtos e tortuosos enquanto um cheiro forte de tinta impregnava todo o ar. Era tinta e não cloro. Percebi ali, então, que a casa era muito menor do que parecia: na verdade, era mais como um borrão colorido.

   Dei três passos adiante, e quando entrei na casa, o frio da cozinha enregelou meus pensamentos. Eu não esperava por aquela visão cinza, como se um tornado estivesse ali dentro também. Então, na sombra do canto direito, vi seu semblante calmo, com aqueles olhos entristecidos por um acaso qualquer. Era ela e não eu. Grãos de pó se espalhavam pela mesa ao centro. Dona Mabelle era a transição da morte para a vida. Estava ausente e seus olhos sem brilho. Contei alguns minutos e a noção do tempo me abandonou de vez.

   Foi aí que seus olhos grandes e opacos se levantaram para mim, e anunciaram que estavam me vendo pela primeira vez. Senti uma paralisia inebriante como se ela trouxesse a verdade naquele instante. Um sussurro frágil e mínimo irrompeu-se de sua garganta:

   -Venha, Guilherme. Vamos lá pra fora...

   Ela passou por mim tão translúcida quanto um fantasma. Sentei-me junto a ela no degrau da escada enquanto estacas de madeira rangiam sob nossos pés. Ficamos assim por instantes a contemplar aquele colorido obtuso. E foi aí que se fez. Ela não me perguntou nada, mas eu contei-lhe tudo mesmo assim. Esvaziei o vazio que havia dentro de mim. Corri por todas as memórias que eu tinha, e ela me disse, daquele jeito mudo, repleto de sílabas silenciosas, que apenas sentia saudade. Desatei a falar sobre o cansaço, as horas em que eu ficava no mesmo lugar, sobre como eu queria abandonar tudo aquilo. Quando parei, percebi que ela estava quase ausente. Agora sombras aproximavam-se de mim pelos flancos, o sol esquentava cada vez mais e o silêncio se tornava definitivamente desnecessário. Ela então se moveu, desnudando toda a sua fragilidade, e eu fingi que não percebi. Uma mudança significante parecia começar logo ali. E foi assim, já se esvaindo, se tornando parte novamente daquela poeira mundana, como se percebesse meus anseios a respeito do abandono total, foi que ela sussurrou ainda mais baixo do que antes:

   -Mas você não pode, Guilherme...
Camila Carelli

Nenhum comentário:

Postar um comentário