domingo, 27 de outubro de 2013


* Bomba *

“Eu sou um ato falso, uma bomba armada sobre a terra, e subitamente uma ideia vacilante na ponta dos dedos.”
Camila Carelli

domingo, 20 de outubro de 2013



 
       
Não me descrevo porque talvez eu não caiba nestas linhas. Minha alma consome muito papel, e mais algumas palavras e então, encontro o mesmo ciclo. Um ciclo que anda dentro de mim; o frio não é o suficiente para descrever o que vive dentro de mim. Talvez eu não exista, apesar da morte ser uma forma de existência. Alimento-me de jogos múltiplos. Faço e me desfaço com a rapidez do sangue que bombeia minha essência.
Nasci desabitada. E só me encontrei porque a voz me veio primeiro. Somente em forma de palavras. A conjugação das frases esquenta meu corpo, acalenta meu pensamento. Retinha-me, mesmo sem saber. E o descobrir do mundo letrado veio vagarosamente, um dia após o outro, e quando despontou foi como uma explosão nuclear de uma alma que necessita vaguear por outros mundos. Só letras. O dom dorme na palma das minhas mãos, e num giro me sufoco, anulo-me num desprezo pretenso de quem sabe que vai se dividir.
Morri uma vez, confesso. Ou melhor, dividi-me. Eu tinha dezesseis anos quando me reparti em duas vidas. Abri a porta de casa e quando vi um solavanco reavivou meus pensamentos. Verônica Ventti caiu dos céus, um palpite que veio para salvar minha vida, minha vontade. Ela se impôs, sem pedir licença. Conheci-a como um convidado que senta à sua mesa sem dizer o porquê. Porém, só mais tarde reconheci naquela mulher encantadora, a continuação da minha história. Foi só olhar para o lado de dentro e entendi completamente. Era eu sem ser eu. Algo que, no fundo, não me pertencia e que era dona de uma vida única.
Uma vida longínqua no tempo. Está tão perdida quanto eu. Verônica Ventti nasceu do meu desejo de existir, como um desejo de viver, um ânimo que me faz ser gente novamente. Ela, por vezes, me resgata do submundo da mente, e ajuda-me a encontrar o caminho eterno para meu próprio reconhecimento e admiração.  E assim, apropriou-se do meu oxigênio e das minhas lágrimas e tomou corpo. É o meu caminho mais curto para os devaneios, para a vida que retumba num instante eterno.
No entanto, eu continuo sendo eu com um novo ímpeto. Ela continua sendo ela, respirando entre os ares da minha sensibilidade. Descrevê-la é tarefa impossível, tanto que somos existencialmente desconhecidas. Não a vejo senão como um brilho necessário aos meus olhos.
Despejo-a para fora de mim sempre que o mundo corre mais rápido do que eu. Ela é a minha resposta ao meu êxito em existir; aos medos que param a vida e aceleram o tempo. O mundo fora de mim é incerto, porém ela é uma companhia eterna. Um alguém tão necessário a mim quanto a continuidade das minhas mãos estarem desenhando estas palavras.
Sou assim e não nego. Estamos costuradas às costas uma da outra, ligadas inegavelmente por um destino qualquer, mesmo que silencioso e abençoado.
Camila Carelli
 


Cartuchos e Cigarrilhas

 
*

 
Parte V

 
*

Os copos não vão se encher sozinhos, Guarnieri, só por causa do teu desespero. É um desperdício de tempo falar contigo, que quase nunca escuta. E é também perca de tempo olhar pra ti, que quase nunca percebe. O sonho que se acalenta e que se perde é como uma gaivota a ganhar os céus e que não vai pousar de novo. Voar para sempre? Pousar para sempre? Pouco importa estas coisas que não mudam a natureza das coisas ou a essência do copo...

A confusão das borboletas, a metamorfose das nuvens, a pessoa que grita do outro lado, o sussurro vazio dos pescadores de almas. E andar com os próprios pés não está bastando, mesmo que seja noite ou dia. O rompimento da luz na tua janela continua, acalentando os teus temores, insensível ao mundo lá fora. Tu tens medo, Guarnieri, do que é altamente vendável? A compra de móveis, de utensílios, de mantimentos, a troca incansável de moeda velha e suja que causa pequenos desastres no corpo de quem apenas observa. Ah, Guarnieri, se eu fosse tu, eu trocava o carpete sujo, as xícaras meladas e aquele abajur queimado da tua casa, que são como moradores de semblante e alma apaziguados demais para o mundo agitado e inteligente que se passa alguns andares abaixo do teu.

Porque a desgraça, Guarnieri, às vezes é algo que nós escolhemos. Quem escolhe as tuas roupas, Guarnieri? E os teus gestos, a tua iminência, a tua ausência, confusão, pressa e dúvidas? Quem escolhe? Duvido da tua verdade, seja qual for o lugar que tu a escondeste... Nada em ti, Guarnieri, possui som ou vida. O som da vida se esvaziou há muito tempo, sobrando apenas as borras de café na tua camisa branca, os móveis cansados de apenas estarem parados, a velhice imunda que inunda a tua sala de estar, e que denunciam o vazio, as linhas confusas dentro do teu peito.

Que cheiro de tragédia é esse? Arrastando-se debaixo da porta, penetrando os átomos de poeira, do próprio ar. Cadê nós nesta peça? Haverá um dia, Guarnieri, que a tua displicência com a vida acabará por consumi-lo, até que sobrará de ti um monte de panos. Mas hoje, não sei por que não tenho pena de ti. Apenas de mim.

Ah, Guarnieri, apressa os passos e troca logo os copos. Jamais espera. E chama logo o Doutor Colleman, porque eu preciso falar com ele.

Camila Carelli