sexta-feira, 23 de agosto de 2013


Cartuchos e Cigarrilhas

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Parte IV

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   É estupendamente desnecessário, Guarnieri, as inúmeras desculpas que tu tentas me dizer. Este modo teatral de quem escolhe a perna para se ajoelhar, de quem escolhe as palavras que vai dizer, é altamente perceptível e me envergonha. Não te envergonha, Guarnieri, todas as tuas mazelas? Tu, que, por vezes, recorre ao ódio e não admite. Cansaste, ao menos, do amor, Guarnieri? Já o testou alguma vez? E aqueles olhos de platina que não te veem, que nunca te viram. Dói-me vê-lo implorar... Um alguém que merece tanto... Que merecia a alegria de ter uma companhia decente.

   Por que eu sei, Guarnieri, que quando tu te sentas defronte a mim neste Café, e teus olhos baixam e as tuas mãos se cruzam, eu sei que tu ainda esperas por algo. E o teu olhar fixo na borda da minha xícara, pupilas de quem nunca conheceu o amor ou a felicidade. Fala-se muito em amor, mas são poucos os que têm a oportunidade de senti-lo. Eu olho pra ti, Guarnieri, e vejo alguém que está prestes a perder a consciência. Tu olhas pra mim e eu vejo aquele rosto de boneco feliz, o teu sorriso largo, os olhos fundos, o rosto redondo... A tua pele, o teu semblante são coisas difíceis de explicar e até de se compreender. Tu és indescritivelmente misterioso, Guarnieri. E o seu mistério também se perpetua nestes gestos automáticos de quem aceita com uma completa calma qualquer pedido que te façam, exatamente como aconteceu quando tu te sentaras defronte a mim naquela mesa de esquina:

   - Então, por que tu não desabotoas os suspensórios?

   Tu me olharas assustado, com a testa franzida, como se os gestos não pertencessem a ti.

   - Por que tu me pedes isto, senhora?

   Dei de ombros.

   Ah, Guarnieri, tu não perdes a mania de arregalar os olhos e de franzir a testa em seguida, como se um ar interrogativo inundasse as tuas faces, desejoso por uma resposta; a mania de olhar várias vezes para um ponto fixo, como se estivesse vendo algo de novo, com o mesmo ar interrogativo, o rosto franzido. Será que tu enxergas algo de novo, Guarnieri?

-   Ahn, e tira também esta camisa branca e borrada – disse eu novamente.

-   Por quê?! Tirar a camisa? Ahn, sim senhora!

   Tu desabotoaras os botões um a um, ainda em dúvida. E o teu dorso me mostrara a verdade! Tu pareces ser fabricado, Guarnieri, um ar dignamente artificial! Será que tu te conheces bem, Guarnieri?

- Não... Ah, não te mexas, acho que assim está bom... – disse eu, depois de analisar o caimento da luz de tarde sobre os teus ombros.

   O teu olhar e a tua intenção se congelaram. A dúvida permaneceu em teu semblante, Guarnieri... Uma pupila estava mais alta do que a outra e a boina escura e surrada lançou seu rosto em sombras nunca vistas antes.

- Esse nome que a senhora usa tem um motivo? – perguntaras tu, de cabeça baixa, com a boina lançando sombras sobre os teus olhos já naturalmente escuros.

- É o mesmo motivo pelo qual tu tens este nome, Guarnieri.

- Uhm... – fizeste tu, depois da tão conhecida franzida de testa, o olhar de quem tem alguma dúvida...

   Tu foste inventado, Guarnieri, feito para seguir os ponteiros do relógio... Mas para, porque eu sugiro que tu continues a perseguir o que quer que seja. Tenho alguns passos para te ensinar e talvez o público aceite te assistir. Mas a dúvida persiste, e eu realmente não sei de nada, Guarnieri. Sim, a nossa existência ainda é incerta, e não pode ser pautada com simples diálogos ao longo dos dias. Talvez juntos ou separados nas esquinas, nos Cafés, no palco, em meio às multidões. Não sei! Um palpite? Uma ideia? Por que nós não trocamos de vida, Guarnieri? É simples te aceitar, mesmo que seja aos poucos... Só é estranho ter que aceitar o modo estranho como tu te desculpas.

   Mas, não importa o que tu faças ou o que tu sejas no futuro, Guarnieri, eu continuarei do teu lado, porque, no fundo, eu sei que tu és uma pessoa boa.
 
                                                                                                                                    Camila Carelli

domingo, 4 de agosto de 2013


Cartuchos e Cigarrilhas

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Parte III

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Era uma luz escura e embaçada. Uma visão de mundo ausente. Tu sonhavas, Guarnieri, com múltiplos anéis em teus dedos, com correntes pesadas em teu pescoço fazendo-o cintilar mais do que o próprio sol nesta manhã de Janeiro. Olha lá pra fora, Guarnieri, e vê que já estamos em Janeiro. O começo de uma grande jornada, de um interminável mundo. E tu aí, só pensando no alumínio mais puro. Não, Guarnieri, os teus pais também não são os culpados de tudo. Talvez nem tu sejas o verdadeiro culpado. Ninguém tem culpa pela balbúrdia no andar de baixo, pela tua incapacidade em falar, pelas cadeiras velhas e vazias na sala de estar ou pelo abajur abandonado e tristonho.

Ninguém tem culpa por tu teres sonhado demais, Guarnieri. Tu não te preparaste para os imprevistos, para a chuva fora de hora ou até mesmo para a minha presença. Porque quando tu estás aí, Guarnieri, o tempo para. E eu, no fundo, sei que quando eu apareço, tu te aceleras. O tempo passa rápido quando não há novidades, e é por isso que tu continuas sendo um “ponto nulo”. Porque quando tu falas ou comentas, ou quando tu ris ou choras ninguém percebe. Ninguém percebe os teus soluços de quem vive entediado. Vizinhos fantasmas, amigos fantasmas, moradia fantasma. Até aquele mais impotente está melhor do que tu. Sim, o teu caso é sério, Guarnieri. E eu, sinceramente, acho que tu sempre desperdiças a chance de ser lembrado.

A tua loucura, a minha insanidade. O teu começo, a minha lembrança. E tudo por que tu tens memória curta. Mas eu vou fazer um favor de te lembrar: o que sai de ti não sai de mais ninguém, e isso é a mais pura verdade. Tu, Guarnieri, e os teus ares febris, a tua polidez, a tua insaciedade pelo novo, as tuas descobertas. A tua palavra morna, e a tua delicadeza de boneco recém-feito, o antigo que tu respiras, os suspensórios, a calça amarrotada, a camisa branca borrada de café. O teu perfume é a tinta acrílica ou em verniz. E seria muita hipocrisia minha dizer que tu não és bonito. A tua beleza é nobre, Guarnieri. Não é perfeita, e mesmo assim não deixa de ser interessante. Um bonito inexato na tua pele, no teu sorriso extravagante, na pinta inconveniente no canto da tua boca. A tua estranheza é rarefeita e a tua estatura baixa dimensiona o teu peso ao das galáxias.

Tu pareces ser pesado, Guarnieri, mas denso mesmo é o que tu tens dentro do coração. Tu és um talento desperdiçado, uma marionete que se esconde. Tu aí cheio de qualidades e olhando o enquadramento do outro. Ora, Guarnieri, o que tu inventas, a tua áurea é só tua! Basta a ti dar um fim nestas dúvidas, nestes encalços; porque você não é mais louco do que ninguém aqui! Tu és somente um artista nato. Um pintor de mãos hábeis, um dançarino inalcançável, um poeta inestimável. Tu amas a arte, Guarnieri, e isso deveria bastar. Mas por que não basta? Por que tu te esqueceste de quem és, do teu quinhão, da tua recompensa. Os teus olhos que só veem a exaltação alheia e que se esquece do ouro que corre nas próprias veias. Tu achas que roubaram o teu prêmio, mas, no fundo, Guarnieri, tu perdeste algo que nem tinha. Não que tu não mereças, mas nada poderia ter se materializado, pois não daria mesmo certo. Os teus segredos não podem ser assim escancarados. Tudo isso aqui é passageiro, é a terra fértil das inspirações que tanto pediu!

Aproveita, Guarnieri, porque uma chance perdida está para sempre perdida. Tu mesmo sabes a razão de tudo isso: esqueceste de admirar a ti primeiro. Jamais deixe que as pessoas decidam o que tu mereces ou que façam tu te sentires menos do que é. És só tu, Guarnieri, quem pode despertar o relógio que há dentro de ti.

Tu és um artista, Guarnieri. Lembre-se eternamente disso.

Camila Carelli