terça-feira, 16 de julho de 2013


Cartuchos e Cigarrilhas

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Parte II

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´Tu o conheces?` – gritou uma voz rouca no corredor em frente à sala. E eu, imediatamente, respondi: ´- Não, rapaz, porque eu desconheço a dimensão exata da minha tristeza.´

Muitos já me questionaram, durante as minhas andanças pelas ruas, calçadas e vielas desta cidade, se tu, Guarnieri, eras visível. E eu despretensiosamente sempre respondi que isso dependia, sim, dependia simplesmente do sentimento que se tinha guardado dentro do peito, se muita tristeza ou muita alegria. Ou talvez daquela solidão muda, imperceptível aos olhos alheios.

E então, Guarnieri, eu te apontava para aquelas senhoras de guarda-chuvas sombrios, em meio àquela multidão, que se movia sem rumo para um destino qualquer. E aquelas senhoras me olhavam com um ar de dúvida, como a me perguntar o quão louca eu estava. E eu te via, tentava mostra-lo àqueles jovens rapazes, às moças de vestidos rendados na base dos joelhos. E nem aquelas pequenas crianças quiseram dar ênfase à minha confusão, pois fingiram não te ver também. E sempre que a chuva caía, eu te perdia de vista. Perdia-te em meio àquela confusão molhada, lotada de chapéus, guarda-chuvas, casacos e coturnos escuros. Eu sei que tu sumias só por que era eu. Era eu, e ponto final. Tu percebias a minha respiração ofegante, os meus ombros soterrados naquele sobretudo velho e caído dum modo grosseiro, os meus cabelos desgrenhados e repartidos... Sim, tu fugias da tua realidade mais cruel.

Mas a voz sempre grita: - Tu o conheces? O que eu deveria dizer, Guarnieri? Uma mentira ou talvez uma hipótese? Nunca te esqueças, jovem: fatos são fatos e hipóteses são hipóteses... E nada transcende esta afirmação exata. A vida não pode ser uma conta exata, e as tuas realidades são apenas a continuação disso. Continuação daquilo que tu escondes, Guarnieri, porque se tu foges é por que tem algo a esconder. Encara ou resiste, mas nunca desistas. Para, talvez. Ah, Guarnieri, eu te disse que as coisas não seriam assim, daquele jeito soluçado, planejado em papel milimetrado. Porque, no fim, não é possível brincar de esconde-esconde e fingir se divertir. É necessário abrir os olhos e mergulhar nestas imensidões, nestes colapsos súbitos de quem escolhe por viver.

Guarnieri, eu só queria te encontrar e esclarecer-te que a calma e a bondade ainda estão por aqui. Joga fora de vez os cartuchos; apaga os cigarros. Para de vez. Esquece isso que insiste em ficar. E também este amor caro que custa mil notas de real, alguns euros, muitos outros cruzados e milhares de libras esterlinas.

Tu, Guarnieri, no fundo, tens medo da brevidade. Mas suspende os teus suspensórios e continua a tua viagem.
 
Camila Carelli

domingo, 14 de julho de 2013





Eu sou agora o ponto distraído que tomou a noite toda. Engoli o silêncio e cada ponto de luz do que antes era uma belíssima avenida. Deflagrei o medo no cúmulo da noite, e persegui cada mínima esperança que descansava entre os cantos. Mas eu confesso a cada um de vocês que, pelo menos para quem olha para esse rosto cansado e retorcido, nada disso surtiu tanto efeito quanto as explosões de puro aço em direção ao céu. Posso ainda tentar definir o que sou neste momento, ou melhor, o que resta de mim.
Eu sou mil cabeças de ferro emplastradas de puro ódio, agulhas estilhaçadas na dor de quem nem conheci ou o apito infantil de quem tenta parar o sofrimento que anda por estas terras, ou talvez o grito de vitória que logo vai ecoar. Mas eu, sinceramente, não acredito em qualquer uma dessas promessas ditas por aí, as quais chegam ao meu ouvido como se fossem uma brisa leve, porém agudas em seu sentido absoluto. Por que nenhum daqueles homens realmente sabe, ou ao menos se interessa pelo que acontece um pouco mais abaixo dos seus propósitos cheios de ganância. E enquanto isso, eu vou retorcendo o sofrimento, e dizendo coisas inexplicáveis somente com o uso de palavras. Todo o acaso é estúpido, e as verdades estão sempre a um passo de se tornarem mentiras.
E nessa altura, eu já não sei se isso tudo é uma guerra política, ou uma luta pessoal. Uma luta feita de metais pesados, de frios matinais e noites solitárias. É assim que eu vivo, e se alguém por acaso me perguntasse se eu gostaria de voltar atrás, eu diria claramente que sim. Voltar talvez para a calma da paz, dos sonhos apaziguados e para o antigo conceito de amizade. Voltar e não ter que sentir o ponto morno de quarenta e três balaços perfurando direto o meu coração. Ou sofrer todos os dias metamorfoses contínuas, e então descobrir que estou coberto por superficialidade.

Cada mentira, para mim, é um ponto quente que me revela a incapacidade de compreender qualquer movimento ou gesto de abandono. E sei que estou cercado por palavras e suspiros nem um pouco legítimos. Mas nada posso fazer. Apenas espero pelo fim do dia, enquanto penso em cada um daqueles rostos marcados por uma angústia sem fim, e é exatamente neste momento que percebo que a morte mora no tempo presente. O meu tempo agora está acabando, e eu termino por confessar que o apontar desses quarenta e três fuzis é pura covardia. Não, eu não acho que eu mereça. Sou só uma alma predestinada, e que se recusa a morrer por qualquer enfermidade terrena. Ah, sim, e se alguém lhes disser que logo a minha pulsação salvará qualquer erro momentâneo, saibam somente de uma coisa: tudo isso é pura demagogia.

Camila Carelli