Cartuchos e Cigarrilhas
*
Parte 1
*
Ah, tu, que tinhas os olhos no paraíso. Ah, sim, tu, que eras aquela criança graciosa e de múltiplos sorrisos, admirada pelas mais finas pessoas que cabiam na realidade. Tu que eras um futuro premeditado, uma aspiração do mais puro talento. E não, não faz muito tempo, e agora é difícil entender o porquê deste presente.
Sim, este presente que no fundo te assombra. Tu, que pensavas em ser um usufruto da mais cordial, fiel espécime de gente. Até que em fins de outono, tu acordaste, e que como uma nuvem de chuva que atravessa o deserto, viu-se em meio a um oceano de tristes e melancólicas ondas que te traziam, sem dúvida, a surda voz da realidade. Concordo como há momentos que não se esquece, como aquele momento em que levantamos de um sonho. Sim, tu estavas deitado naquele fardo, e percebeste então que os teus pés estavam notoriamente amarrados. Ah, sim, tu percebeste que as veias das tuas pernas corriam como grandes serpentes azuis para a borda da epiderme, como se quisessem infiltrar todo o medo dentro de ti. Sim, agora tu percebes. Logo tu, que pensavas em admirar o horizonte ao longe, quando somente via os riscos das rabiolas daquelas pipas no ar. Logo tu que poderias ter alçado voo naquele céu!
Sim, agora tu te viras de lado, e uma náusea te percorre, mostrando que o quê supostamente existia era a mentira mais óbvia. Tão óbvia como o cheiro de mofo que inunda as tuas narinas, como a poeira que percorre as janelas como um véu malogrado. Logo tu que pensavas em retratos, cores e bordas. Mas isto aqui é somente um cômodo, e tu não tens nem um interruptor pra iluminar o vazio da tua voz. Logo agora que se faz impossível enfrentar a solidão com um grito atroz de desespero. Neste lugar que não é mais do que uma prisão, com uma vidraça embaçada e paredes trincadas pela umidade que percorre a parede desde o mais alto canto, e que enregela o ar. Ah, o ar frio de inverno! As constelações apagadas sobre as nossas cabeças! Um som nunca é motivo para esperança. E muito menos este som de água que se reparte entre as encanações corroídas, lembranças de um tempo em que o oceano parecia estar próximo demais!
Ah, sim, logo tu que poderias ter trazido uma fagulha de luz para o mundo, mesmo que olhando daquela fechadura minúscula que trancafiava as emoções solenes do coração. Porque agora o único som que tu pareces ouvir é o deste soluço, mudo e surdo, que ecoa de dentro de ti sem a menor das complicações, e que se infiltra nas tocas dos ratos, que te atacam os pés, os dedos. Ah, sim, e também os teus olhos que não são mais brilhantes do que o azul do céu.
Ah, Guarnieri, Guarnieri... Agora não adianta mais tu tentares acender aquela cigarrilha, pois a fumaça não traz o dia revolto. Não adianta, pois as cores do cartucho são muito manchadas quando vistas pelos teus olhos...
Guarnieri, tu sabes a verdade que está escondida talvez lá fora, na rua. Ou debaixo dos pés sujos e pesados. Seus pais... A família... Tudo é maior e mais simples do que parece.
Ah, sim, Guarnieri, eles te enganaram a vida inteira. E só agora tu percebeste que és apenas mais um “ponto nulo” no Universo.
Camila Carelli